Por: Daniel Cavalcanti
Era uma vez uma criança que desconhecia o mundo e suas mágoas. Era apenas uma criança.
Certo dia ao sair para caminhar ao relento do bairro, encontrou uma mulher que aparentava extrema pobreza. Esta mesma olhou-o com receio e relutou em pedir um pão para alimentar seu filho.
O menino ao ouvir o pedido inusitado, tirou do saco da padaria três pães, pegou o primeiro e disse: “Este é para o seu pequeno filho de colo.” Estendendo a mão com o segundo disse: “Este é para a senhora, e, o terceiro ofereço à sua filha que ficou em casa.”
Então, emocionada, a senhora agradeceu e abençoou o garoto sem entender seu conhecimento de sua filha que ficara em casa.
Seguindo caminho, o menino deu-se ao encontro de duas amigas – ambas mais velhas e também conhecedoras. Uma delas aparentava certo espanto pela atitude do garoto. Anos mais tarde morreria sem ver o homem que viraria o seu tão admirado amigo.
Em outras tantas ocasiões o menino demonstrou involuntariamente saber da dor e da alegria de todos que o cercavam. Era apenas um menino.
Ao crescer um pouco, ele notou o espanto que causava nas pessoas por poder sentir aquilo que lhe parecia óbvio. Resolveu esconder sua tão bela percepção, afim de não incomodar ou tornar-se centro de alguma atenção.
Ao lado da idade vieram também as novidades sensoriais. O seu ‘sentir’ tornou-se mais apurado e oculto. Quase um defeito, capaz de notar até mesmo a pureza de todos que se aproximavam usando apenas o olhar como medida, algo inexplicável à ciência que conhecia.
Foi então no escuro dos seus sentidos que começaram as belas e destruidoras explosões que mudariam definitivamente sua forma de ver e sentir o mundo.
Pureza maior não havia, muito menos digo de sua áurea. Como por tantos anos aquilo passou imperceptível a sua maior particularidade? Conhecia agora a sensação por tantos cantada e admirada.
Não houve dúvida. Faria daquela sensação a maior de todas. Colocou então uma prece em seu pequeno altar, dedicaria ao menos metade de todo o seu tempo para bem fazer o que desejava.
Acreditando ter sido brevemente atendido, meio desengonçado e novato na arte deu-se ao luxo de entregar suas verdades. Nada queria ter por escondido.
Entregou-as como joga o pescador a rede ao mar. Nada foi omitido além do que não teve como contar. Foi então que nasceu sua maior desgraça.
De tanto esconder suas particularidades, fez com que o mundo considerasse-as como falsas. Suas histórias foram consideradas como lendas e foi rotulado de mentiroso.
Por não acreditar nem creditar alguma verdade ao menino, deixou-o. Era apenas um menino. Quis então pelo seu bem fazer daquilo apenas um problema a ser facilmente contornado, mas não conseguiu. Havia tocado no mais delicado da natureza humana.
Seus tão ilustres dotes o aconselhavam a não mais voltar ao seu lar favorito, ele lhe faria mal. Pedindo tempo ao mundo e lutando contra si, o menino chorou. Queria apenas não sentir o que antes tanto desejava.
Luas passadas, foram poucas as vezes que ele voltou a falar de suas habilidades. Jurara nunca mais citá-las. Não importa a quem.
Agora esse menino não vai mais à padaria e nunca mais encontrou aquela senhora a pedir-lhe pão. Sentir tornou-se difícil.
Os sentimentos que lhe rodeiam ficam obscurecidos por suas lembranças. Parece nem mesmo senti-los. Sem entender o que há consigo, procura em fontes mais antigas uma forma de soltar-se.
Enquanto nada pode fazer, ignora o ‘sentir’ como quem ignora o ar, mesmo sabendo ser-lhe essencial.
Não é o mesmo menino.