Angústia

Ah, desgraça que me corrói os ossos!
Quero sabendo que desejar me mal faz.
De onde vens infeliz?

Deixa-me só com minhas lembranças.
Quero ainda tê-las, vivas
no passado que gosto de viver.

Nada mudarás em minha alma, tua força em nada se compara
com aquela que me fez assim pensar.
Teus conselhos não são sadios.

No máximo trarão frio,
para o qual há muito está congelado.

Essa chaga em que tocas, é demais delicada.
Profunda e coberta no alto,
para permitir que não seja mais tocada.

És então além de tudo atrevida,
metida a ensinar-me o que já sei.

Nesta arte fostes minha agiota,
tudo que me ensinastes pedes agora,
para cada grama de mim um pouco mais de tua dor.

Irei então calar-me,
dar-te-ei o silêncio que te é justo.

 

Daniel Cavalcanti

Published in: on 25 de abril de 2011 at 18:56  Deixe um comentário  

Algemas de carne

Raimundo Braga Martins

Nestes teus braços preso, com brandura,
viver a vida inteira… Quem me dera!
São algemas de carne… São loucura…
Dos quais sair não posso e nem quisera!

O amor não passa de sutil quimera
num sonho todo feito de ventura:
Nasce no alvorecer da primavera
para morrer no outono da amargura!

Em cada elo dessa algema eu sinto
o prazer de morrer… Sinto a doçura
que não senti na taça de absinto…

E toda aquela minha desventura
em prazer se transforma… E já pressinto
sucumbir nesse laço de ternura!

Published in: on 22 de abril de 2011 at 21:49  Deixe um comentário  

Ipê amarelo

Por: Daniel Cavalcanti

Sentado à beira desta janela, olhando para o horizonte a procura de um pouco de paz, penso: ‘Que faço eu desta aflição?’

Entrego-me ao pensar sonolento e nada que sinto parece ter efeito. O vendedor diuturno passa à minha sombra. Vendia algo que ignorei. Na verdade, nem sei se algo ainda vendia.

E nessa desconexão de meus seis sentidos, dei-me por morto ou vencido, não sei se fraco ou esquecido, fiz silêncio para ter atenção.

Ao meu olhar apenas o amigo de sempre. Voando calmo e cantando injúrias de amor, olhou-me e nada disse. Logo foi para casa ter com a sua. Feliz ele que livre, encontra inda quem possa chamar de ‘sua’.

Fecho os olhos, levo-me ao universo. Lá, conturbado e perplexo, notei que na água de outro verso, por baixo de tudo que fiz, estava nada senão teu reflexo, olhando-me como quem diz: ‘fique bem, estou por perto.’

Sem respirar nada, olhei para o alto e pensei em bom tom: ‘Sim, estás por perto, és tu a morta de meu amor, e eu o morto do teu reflexo, somos assim dois corpos podres se olhando na escuridão. Tu com pena de mim, eu com pena de nada.’

Foi então que no meio da floresta, cavei o mais profundo que minha força permitiu. Peguei então meus versos, joguei-os na escuridão daquele semi-inferno, e, com mais cinco dedos de terra plantei um ipê amarelo, dei para ele o nome de Josué.

Representando assim a força que sugarei deste amontoado hormônico. De tal forma, espero daqui há pouco tempo, ter um belo ipê a fazer-me sombra, e lembrar-me: sobre isso não farei mais versos.

Published in: on 10 de abril de 2011 at 22:49  Deixe um comentário  

Sinto vergonha de mim

Sinto vergonha de mim
por ter sido educador de parte desse povo,
por ter batalhado sempre pela justiça,
por compactuar com a honestidade,
por primar pela verdade
e por ver este povo já chamado varonil
enveredar pelo caminho da desonra.

Sinto vergonha de mim
por ter feito parte de uma era
que lutou pela democracia,
pela liberdade de ser
e ter que entregar aos meus filhos,
simples e abominavelmente,
a derrota das virtudes pelos vícios,
a ausência da sensatez
no julgamento da verdade,
a negligencia com a família,
célula-mater da sociedade,
a demasiada preocupação
com o “eu” feliz a qualquer custo,
buscando a tal “felicidade”
‘em caminhos eivados de desrespeito
para com o seu próximo.

Tenho vergonha de mim
pela passividade em ouvir,
sem despejar meu verbo,
a tantas desculpas ditadas
pelo orgulho e vaidade,
a tanta falta de humildade
para reconhecer um erro cometido,
a tantos “floreios” para justificar
atos criminosos,
a tanta relutância
‘em esquecer a antiga posição
de sempre “contestar”,
voltar atrás
e mudar o futuro.

Tenho vergonha de mim
pois faço parte de um povo
que não reconheço,
enveredando por caminhos
que não quero percorrer…

Tenho vergonha da minha impotência,
da minha falta de garra,
das minhas desilusões
e do meu cansaço.
Não tenho para onde ir
pois amo este meu chão,
vibro ao ouvir meu Hino
e jamais usei a minha Bandeira
para enxugar o meu suor
ou enrolar meu corpo
na pecaminosa manifestação de nacionalidade.

Ao lado da vergonha de mim,
tenho tanta pena de ti,
povo brasileiro!

De tanto ver triunfar as nulidades,
de tanto ver prosperar a desonra,
de tanto ver crescer a injustiça,
de tanto ver agigantarem-se os poderes
nas mãos dos maus,
o homem chega a desanimar da virtude,
a rir-se da honra,
a ter vergonha de ser honesto.

Published in: on 25 de março de 2011 at 16:17  Deixe um comentário  

Menino

Por: Daniel Cavalcanti

Era uma vez uma criança que desconhecia o mundo e suas mágoas. Era apenas uma criança.

Certo dia ao sair para caminhar ao relento do bairro, encontrou uma mulher que aparentava extrema pobreza. Esta mesma olhou-o com receio e relutou em pedir um pão para alimentar seu filho.

O menino ao ouvir o pedido inusitado, tirou do saco da padaria três pães, pegou o primeiro e disse: “Este é para o seu pequeno filho de colo.” Estendendo a mão com o segundo disse: “Este é para a senhora, e, o terceiro ofereço à sua filha que ficou em casa.”

Então, emocionada, a senhora agradeceu e abençoou o garoto sem entender seu conhecimento de sua filha que ficara em casa.

Seguindo caminho, o menino deu-se ao encontro de duas amigas – ambas mais velhas e também conhecedoras. Uma delas aparentava certo espanto pela atitude do garoto. Anos mais tarde morreria sem ver o homem que viraria o seu tão admirado amigo.

Em outras tantas ocasiões o menino demonstrou involuntariamente saber da dor e da alegria de todos que o cercavam. Era apenas um menino.

Ao crescer um pouco, ele notou o espanto que causava nas pessoas por poder sentir aquilo que lhe parecia óbvio. Resolveu esconder sua tão bela percepção, afim de não incomodar ou tornar-se centro de alguma atenção.

Ao lado da idade vieram também as novidades sensoriais. O seu ‘sentir’ tornou-se mais apurado e oculto. Quase um defeito, capaz de notar até mesmo a pureza de todos que se aproximavam usando apenas o olhar como medida, algo inexplicável à ciência que conhecia.

Foi então no escuro dos seus sentidos que começaram as belas e destruidoras explosões que mudariam definitivamente sua forma de ver e sentir o mundo.

Pureza maior não havia, muito menos digo de sua áurea. Como por tantos anos aquilo passou imperceptível a sua maior particularidade? Conhecia agora a sensação por tantos cantada e admirada.

Não houve dúvida. Faria daquela sensação a maior de todas. Colocou então uma prece em seu pequeno altar, dedicaria ao menos metade de todo o seu tempo para bem fazer o que desejava.

Acreditando ter sido brevemente atendido, meio desengonçado e novato na arte deu-se ao luxo de entregar suas verdades. Nada queria ter por escondido.

Entregou-as como joga o pescador a rede ao mar. Nada foi omitido além do que não teve como contar. Foi então que nasceu sua maior desgraça.

De tanto esconder suas particularidades, fez com que o mundo considerasse-as como falsas. Suas histórias foram consideradas como lendas e foi rotulado de mentiroso.

Por não acreditar nem creditar alguma verdade ao menino, deixou-o. Era apenas um menino. Quis então pelo seu bem fazer daquilo apenas um problema a ser facilmente contornado, mas não conseguiu. Havia tocado no mais delicado da natureza humana.

Seus tão ilustres dotes o aconselhavam a não mais voltar ao seu lar favorito, ele lhe faria mal. Pedindo tempo ao mundo e lutando contra si, o menino chorou. Queria apenas não sentir o que antes tanto desejava.

Luas passadas, foram poucas as vezes que ele voltou a falar de suas habilidades. Jurara nunca mais citá-las. Não importa a quem.

Agora esse menino não vai mais à padaria e nunca mais encontrou aquela senhora a pedir-lhe pão. Sentir tornou-se difícil.

Os sentimentos que lhe rodeiam ficam obscurecidos por suas lembranças. Parece nem mesmo senti-los. Sem entender o que há consigo, procura em fontes mais antigas uma forma de soltar-se.

Enquanto nada pode fazer, ignora o ‘sentir’ como quem ignora o ar, mesmo sabendo ser-lhe essencial.

Não é o mesmo menino.

Published in: on 16 de março de 2011 at 22:38  Deixe um comentário